domingo, 11 de novembro de 2012

LIVRO: Moonwalk - Capítulo 03




Estávamos ficando muito bons, mas trabalhávamos igual a pessoas do dobro da nossa idade. Enquanto assistia meus irmãos mais velhos, incluindo Marlon nos bongôs, o pai trouxe dois jovens chamados Johnny Jackson e Randy Rancifer para tocar bateria e órgão. Mais tarde, a Motown declararia que eles eram primos, mas isso era só um enfeite, pra pensarem que éramos todos uma família. Nos tornamos uma banda de verdade! Eu era tipo interesseiro, observando todo mundo e tentando aprender tudo que desse. Eu ficava totalmente paralisado quando meus irmãos ensaiavam ou tocavam em eventos de caridade e shopping centers. Ficava mais fascinado ainda quando olhava pro Jermaine. Ele era vocalista na época e era meu irmão mais chegado – Marlon era bem próximo de mim em idade por isso. Foi Jermaine que me levou pro jardim de infância e eram as roupas dele que ficavam pra mim. Quando ele fazia alguma coisa, eu tentava imitar. E quando imitava bem, papai e meus irmãos riam muito, mas quando eu comecei a cantar, eles ouviram. Eu ainda cantava com voz de bebê e apenas imitando sons. Era tão jovem que nem sabia o significado do que eu cantava, mas quanto mais eu cantava, melhor eu ficava.

Eu sempre soube dançar. Eu observava os movimentos do Marlon não só porque o Jermaine tinha que carregar o baixo, mas também porque eu sabia que podia chegar a seu nível, porque ele era só um ano mais velho que eu. Em breve, já estaria cantando em casa e me preparando pra unir-se aos meus irmãos em público. Conforme ensaiávamos, estávamos todos descobrindo nossas forças e fraquezas como membros do grupo, e a troca das responsabilidades aconteceram naturalmente.

Nosso lar em Gary era pequeno, só tinha três quartos, mas na época me pareceu muito maior. Quando se é jovem, o mundo inteiro aparenta ser tão enorme que uma pequena sala pode parecer quatro vezes maior. Ao voltamos a Gary anos depois, ficamos todos surpresos em como a casa era pequena. Eu me lembrava dela maior, mas, ao entra pela porta da frente, era só dar cinco passos pra sair pela de trás. Não chegava a ser maior do que uma garagem, mas quando morávamos lá era perfeito pra nós, crianças. Você enxerga as coisas de uma perspectiva tão diferente quando se é jovem. Nossos dis de escola em Gary são um borrão pra mim. Eu me lembro vagamente de ser deixado na porta da escola, no primeiro dia do jardim da infância, e eu me lembro perfeitamente que eu odiei. Eu não queria que minha mãe fosse embora, obviamente, e também não queria ficar lá.

Depois que me acostumei, como todas as crianças, aumentou meu amor pelos professores, principalmente pelas mulheres. Elas eram tão gentis e me adoravam. Aquelas professoras eram maravilhosas; quando eu passei de ano, todas choraram e me abraçaram e disseram o quanto odiavam quando eu saía da sala. Eu era tão louco pelas minhas professoras que eu roubava jóias da minha mãe e dava pra elas como presentes. Elas ficavam muito tocadas, mas eventualmente minha mãe descobriu e pôs um fim em minhas generosidades com as coisas dela. Por aquele desejo que eu tinha de dá-las presentes por tudo que eu recebia dava pra ver como eu amava elas naquela escola.

Teve um dia, na primeira série, eu participei de um programa que foi entregue a escola toda. Cada aluno de cada classe tinha que fazer algo, por isso fui pra casa e discuti com meus pais. Decidimos que eu devia vestir calças pretas e uma camisa branca e canta “Climb Ev’ry Mountain” do filme A Noviça Rebelde. Quando terminei a música, a reação da platéia me impressionou. Os aplausos eram explosivos e as pessoas sorriam; alguns estavam de pé. Meus professores estavam chorando e eu nem acreditava. Eu tinha deixado todos eles felizes. Era uma sensação tão boa. Eu me senti também um pouco confuso, porque eu não tinha feito nada demais. Eu só cantei do mesmo jeito que eu cantava em casa de noite. Quando você performa, você não percebe com sua voz soa ou que reação está causando. Você só abre a boca e canta.

Logo, papai já estava nos enfeitando todos para as disputas de talentos. Ele foi um ótimo técnico e gastou muito dinheiro e tempo trabalhando com a gente. Talento é algo que Deus dá para um artista, mas nosso pai nos ajudou a cultivar isso. Eu também acho que nós já tínhamos um certo instinto pro show business. Nós amávamos se apresentar e nos dávamos tudo que tínhamos na hora. Todo dia, ele se sentava com a gente em casa pra ensinar. Nós nos apresentávamos para ele e ele nos criticava. Se estragar, você apanha. As vezes com o cinto, as vezes com uma vareta. Meu pai foi muito rígido com nós – muito mesmo. Marlon se metia em encrenca o tempo todo. Por outro lado, eu apanhava por coisas que aconteciam fora do ensaio. Papai me deixava tão revoltado que eu tentava revidar, e acabava apanhando mais. Eu tirava meu sapato e jogava nele, ou revidava lutando, mexendo os punhos. Por isso que eu apanhei mais que todos meus irmãos juntos. Eu revidava e meu pai me matava, acabava comigo. Minha mãe disse que eu já revidava quando era bem pequenininhos, mas eu não lembro. O que eu me lembro é de mim correndo pra debaixo da mesa e tentando fugir dele, o deixando com raiva. Tivemos um relacionamento turbulento.



Mesmo assim, na maior parte do tempo, a gente ensaiava. Sempre ensaiava. Algumas vezes, tarde da noite, não tínhamos tempo nem pra brincar com jogos ou com nossos brinquedos. As vezes, havia um esconde-esconde ou pular corda, mas também era só. A maior parte do nosso tempo era trabalho. Eu me lembro perfeitamente de eu e meus irmãos correndo pra dentro de casa quando meu pai chegava, porque estaríamos bem encrencados se não estivéssemos prontos pro ensaio.

Em meio a tudo isso, minha mãe foi completamente compreensiva. Foi ela que primeiro reconheceu nosso talento e continuou a nos ajudar a compreender nosso potencial. É difícil imaginar que chegaríamos até onde chegamos sem amor e o bom humor dela. Ela se preocupava com o estresse que passávamos e as longas horas de ensaio, mas queríamos ser o melhor que podíamos porque amávamos música.

Música era importante em Gary. Nós tínhamos nossas próprias estações de rádio e casas noturnas, e não haviam pessoas que não quisessem estar nelas. Depois que o pai presenciou nossos ensaios na  tarde de sábado, ele ia assistir um show local ou dirigir até Chicago pra ver alguém se apresentar. Ele sempre prestava atenção em coisas que  poderia nos ajudar em nossa jornada. Ele voltava pra casa e nos contava o que ele tinha visto e quem fazia o que. Ele nos mantinha atualizados, mesmo se fosse um teatro local que mantinha concursos que pudéssemos participar ou um show profissional com belos atos dos quais nós poderíamos nos adaptar com suas roupas ou movimentos. As vezes, eu não via o pai até voltar do Hall do Reino aos domingos, mas assim que eu entrasse em casa ele já ia me dizendo o que ele tinha visto na noite passada. Ele me garantia que eu sabia dançar em um pé só como James Brown se eu apenas tentasse. Ali eu já estava fora da igreja e de volta ao show Business.

Começamos a colecionar troféus com nossas apresentações quando eu tinha seis anos. Já estávamos organizados; o grupo estrelou comigo em segundo, vindo da esquerda e Jackie a minha direita. Tito com a sua guitarra estava bom, com Marlon ao seu lado. Jackie foi crescendo e ficou mais alto que Marlon e eu. Mantivemos aquela formação de concurso a concurso e funcionou bem. Enquanto outros grupos que conhecemos brigavam entre si e saíram, nós nos tornávamos mais experientes e refinados. Os moradores de Gary que compareciam regularmente aos shows de talentos provavelmente nos conheciam, então nós dávamos o melhor para surpreendê-los. Nós não queríamos que eles ficassem entediados com nosso show. Sabíamos que mudar era bom, e nunca tivemos medo disso.

Vencer uma noite amadora ou um show de talentos em dez minutos, duas músicas tomam tanta energia quanto um show de 90 minutos. Tenho certeza que é porque não se pode cometer erros, sua concentração queima mais dentro de você com uma ou duas músicas do que quando se tem a luxúria de vinte ou quinze. Esses shows de talentos foram nossa educação profissional. Tinha vezes que a gente viajava milhas de distância pra cantar uma ou duas músicas e torcer para que o público não ficasse contra a gente porque éramos de fora da cidade. Nós competíamos contra pessoas de todas idades e habilidades, desde comediantes a cantores e dançarinos como nós. Tínhamos que agarrar a platéia e segurar. Nada acontecia sozinho, todas as roupas, sapatos, penteados, tudo tinha que estar do jeito que o pai planejava. Nós parecíamos incrivelmente profissionais. Depois de todo esse planejamento, se apresentássemos a música da maneira que tínhamos ensaiado, as premiações viriam naturalmente. Isso acontecia até na parte Wallace High da cidade, aonde a vizinhança já possuía seus performers e suas torcidas e nós os desafiávamos logo na área deles. Obviamente que os artistas locais sempre tiveram seus fãs bastante leais, sendo assim, quando a gente saia do nosso território e entrava no de outros, era bem difícil. Quando o mestre das cerimônias coloca a mãos sobre nossas cabeças para “medir os aplausos”, queríamos ter certeza de que nós tínhamos dado a eles mais do que qualquer outro.


Como artistas, Jermaine, Tito e o resto de nós estávamos sob uma pressão tremenda. Nosso empresário era do tipo que nos lembrava que James Brown culparia seus Famous Flames se eles perdessem uma entrada ou errassem um passo durante uma performance. Como vocalista principal, eu sentia que eu – mais do que os outros – não podia sair de noite pra balada. Eu me lembro de estar no palco de noite depois de ter passado o dia todo doente. Era difícil se concentrar nessas horas, embora eu soubesse todas as coisas que meus irmãos e eu tínhamos que fazer tão bem, que eu podia fazer dormindo. Nessas horas, eu tinha que me lembrar em não procurar ninguém que eu conhecesse em meio a platéia, nem olhar pro mestre, essas duas coisas podem distrair um jovem performer. Nós cantávamos músicas que as pessoas conheciam da rádio ou canções que meu pai sabia que eram clássicas. Se você fosse mudar o arranjo, tinha que soar melhor que a original.

Nós vencemos o show e talentos da cidade quando eu tinha oito anos, com a nossa versão da música”My Girl” dos The Temptations. O concurso ficava só a alguns quarteirões do Roosevelt High. Com as notas de abertura no baixo por Jermaine, as primeiras notas na guitarra por Tito até todos nós cantando a música, tinha pessoas implorando pra tocar a música toda. Jermaine e eu cantávamos os versos e o Marlon e o Jackie ficavam de fundo. Foi uma sensação maravilhosa para todos nós ganhar aquele troféu, o maior até então, passando pra frente e pra trás entre a gente. Eventualmente, ficou apoiado no banco da frente como um bebê e nós voltamos pra casa com o papai dizendo “Quando vocês fizeram do jeito que fizeram hoje, não tem como eles não entregarem a vocês”

Agora, nós éramos campeões da cidade de Gary e Chicago era nosso próximo alvo porque era uma área mais instável e era a mais bem falada a milhas de distância. Começamos a planejar seriamente nossa estratégia. O grupo do meu pai tocou as músicas de Chicago do Muddy Waters e do Howlin’ Wolf, mas ele sabia que se a música tivesse boas batidas era algo bom para nós, crianças. Tínhamos sorte por isso porque as pessoas da idade dele não eram tão atualizadas. Pra falar a verdade, conhecemos artistas que achavam que o som dos anos 60 estava abaixo de suas idades, mas meu pai não. Ele conhecia uma boa voz só de ouvir, até nos disse que ele viu o grande grupo de Gary, The Spaniels, na época que eram astros não muito mais velhos que nós. Qunaod Smokey Robinson dos Miracles cantava uma música como “Tracks of My Tears” ou “Ooo, Baby Baby,” ele ouvia com tanta atenção como nós. Os anos 60 não abandonaram Chicago musicalmente. Ótimos cantores como The Impressions com o Curtis Mayfield, Jerry Butler, Major Lance e Tyrone Davis tocavam na cidade toda nos mesmos lugares que nós. Já nesse ponto, meu pai nos gerenciava por completo. E tinha só um turno de meio-período na fábrica. Minha mãe tinha lá suas dúvidas sobre a estabilidade dessa decisão, não porque ela não nos achava bons e sim porque ela não conhecia mais ninguém que passava a maior parte de seu tempo tentando botar seus filhos em meio ao show business. Ela ficou ainda menos empolgada quando o pai contou que ele tinha nos conseguido um trabalho na boate Mr. Lucky’s, de Gary. Éramos forçados a passar nosso fins de semana em Chicago e outros lugares tentando ganhar o maior número de shows amadores, e essas viagens eram bem caras, por isso o emprego no Mr. Lucky’s era uma forma de tornar tudo possível. A mãe ficou surpresa com a resposta que estávamos tendo e ficava muito contente com nossos prêmios e atenção, mas se preocupava bastante com a gente. Se preocupava comigo por causa da minha idade. “É uma vida muito pesada para uma criança de nove anos.” Ela diria encarando seriamente meu pai.

Eu nem sei o que eu e meus irmãos esperávamos ver, mas as platéias das boates não eram iguais as do Roosevelt High. Tocávamos entre comediantes ruins, organizadores de coquetéis e strippers. Com pessoas erradas e conhecendo coisas que seria melhor eu conhecer anos mais tarde. Mas ela não precisava se preocupar; um olhar que eu dava pra uma daquelas strippers já não me interessava em me meter em encrencas – não com nove anos! Foi um jeito horrível de se viver, porém isso nos deixou ainda mais determinados em avançar sobre o circuito e ficar o mais longe possível daquele tipo de vida.

Estar na Mr. Lucky’s significou pela primeira vez em nossas vidas que nós tínhamos um show inteiro pra fazer – cinco músicas por noite, ele arranjaria. Trabalhávamos duro mas o povo do bar não era ruim com a gente. Eles curtiam James Brown w Sam e Dave o mesmo tanto que nós, além do mais, nós éramos algo extra que vinha de graça coma consumação e as bebidas, por isso eles ficavam surpresos e agradecidos. A gente até se divertia com eles em um número, com a música “Skinny Legs and All” do Joe Tex. Começávamos a tocar e eu ia no meio da platéia, me metia debaixo das mesas e levantava as saias das moças pra olhar. As pessoas jogavam dinheiro conforme eu corria, e, ao começar a dançar, botava todos os dólares e moedas que antes haviam acertado o chão dentro dos bolsos da minha jaqueta.

Eu não ficava nervoso quando a gente tocava por causa de toda a experiência que já tinha com os shows de talentos. Eu sempre estava pronto pra me apresentar, sabe, só isso – cantar e dançar e se divertir.

Naquela época, nós tocávamos em mais de um clube de strippers. Eu costumava ficar do lado do palco de um lugar em Chicago observando uma moça de nome Mary Rose. Eu devia ter nove ou dez anos. Essa garota tirava toda a roupa e jogava na platéia. Os homens pagavam, cheiravam e gritavam. Meus irmãos e eu assistíamos, entendendo tudo, e o meu pai nem se importava. Estávamos expostos a muita coisa seguindo aquele tipo de carreira. Tinha um aposento em que haviam feito um buraco na parede do vestiário dos artistas que dava para o banheiro feminino. Dava pra olhar por este buraco, e eu vi coisas que jamais esquecerei. Os caras de lá eram tão desordenados, eles aprontavam coisas como fazer buracos na parede do banheiro das moças o tempo todo. E é claro, lhe garanto que meus irmãos e eu lutávamos disputando quem olhava pelo buraco. “Sai da frente, é minha vez!” Um empurrando o outro pra poder ver.

Depois, nós fomos ao Teatro Apollo em Nova York, eu vi algo que realmente me espantou porque eu nem sabia  que aquilo existia. Eu já tinha visto várias strippers, mas naquela noite apareceu essa garota com lindos cílios e cabelo comprido pra cumprir sua rotina. Ela realizou uma bela performance. Do nada, no final, ela tirou a peruca, arrancou um par de laranjas de dentro do sutiã e revelou que era um sujeito com uma cara carrancuda debaixo de toda a maquiagem. Aquilo me espantou. Eu era só uma crianças e não conseguia nem acreditar numa coisa dessas. Mas ai eu olhei pra platéia do teatro e eles curtiram, aplaudindo e assoviando. Eu era apenas uma criança pequenina, do lado do palco assistindo essa loucura

Fiquei chocado.

FONTE: Todos os direitos da tradução reservados a DANIEL JACKSON e o FORUM NEVERLAND.

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